França
Há onze anos morando num aeroporto,
imigrante é autorizado a partir –
mas não quer sair de lá
Merhan Karimi Nasseri é um personagem singular. De nacionalidade incerta e sem passaporte, está confinado há onze anos no mais improvável dos endereços, a ala de trânsito do Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Nenhuma autoridade o pôs para fora, durante todo esse tempo, por uma estranha razão legal. Sem documento de identidade, ele não podia entrar em nenhum país, nem mesmo na França, e estava condenado a viver numa espécie de limbo. Isso mudou há duas semanas, quando as autoridades francesas lhe concederam um passaporte de refugiado político, que permite viajar para onde quiser na Europa. Aí aconteceu o que ninguém esperava: Nasseri simplesmente não quer sair do aeroporto. Diz não ter para onde ir. "A reação dele é compreensível", diz Philippe Bargain, chefe do serviço médico do aeroporto. "Imagine o que é esperar durante onze anos por algo e, de repente, em poucos minutos, assina uns papéis e pronto."
Nasseri é um dos casos mais bizarros na história das migrações. Sua estranha odisséia começou em 16 de novembro de 1988, dia em que se apresentou ao balcão da British Airways, em Paris, munido apenas de uma passagem de ida para Londres. Explicou que seus documentos haviam sido roubados numa estação de trem da capital francesa. Contrariando todas as regras, os franceses permitiram que tomasse o avião. Como era de se prever, os ingleses o despacharam de volta no primeiro vôo. Como também não podia entrar na França, Nasseri sentou-se num banco e ficou à espera de que resolvessem seu problema. Por fim, descoberto pela imprensa, ele se tornou personagem popular no aeroporto. A polícia francesa entregou-lhe uma declaração carimbada na qual se lê: "vivo no aeroporto com a permissão da polícia e da British Airways". E o deixou em paz.
O passado de Nasseri é uma incógnita. Ele diz ter 54 anos e ser filho de uma enfermeira inglesa e de Abdulkarim Nasseri, um médico iraniano perseguido pelo governo de seu país. Mas até hoje ninguém conseguiu confirmar essa história. Um funcionário do aeroporto parisiense o apelidou de "Sir Alfred", nome com o qual se apresenta hoje. E, como um lorde inglês, Nasseri está sempre impecável. Dorme sentado num banco. Ele toma banho todos os dias nos banheiros públicos e lava suas roupas na lavanderia do aeroporto. Passa o dia ouvindo música em seu walkman e lendo publicações inglesas deixadas ali pelos passageiros. De vez em quando, dá uma volta no setor de embarque, localizado no piso superior. Ordens do médico, que diagnosticou um problema em seus tornozelos devido à falta de mobilidade.
Durante todos esses anos, Nasseri sobreviveu da boa vontade alheia. Funcionários de companhias aéreas lhe presenteiam com vales-refeição ou com artigos de limpeza que sobram da primeira classe de vôos. Viajantes que souberam de sua história lhe enviam dinheiro pelo correio (endereço: Sir Alfred, Charles de Gaulle Airport). Nasseri, porém, detesta que o tomem por um mendigo. "Minha moral é a honestidade e o serviço aos outros", assegura, orgulhoso de já ter devolvido inúmeras carteiras esquecidas pelos passageiros. Sua história no aeroporto está perto do fim. Enquanto não decide para onde vai, Merhan "Sir Alfred" Nasseri continua indiferente a todas as chamadas do alto-falante. Como fez nos últimos onze anos.
Fonte: Revista Veja, 06/10/1999.
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